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Como Criar Textos 'Reais' na Ficção: As Lições de Coetzee e Outros Mestres

  • Foto do escritor: Paulo André
    Paulo André
  • 1 de mai.
  • 7 min de leitura

Atualizado: 18 de jul.


uma pena simbolizando a necessidade do escritor criar verossimilhança

Todo Escritor é um Mentiroso (E os Bons São Mestres na Arte de Enganar)


Vamos direto ao ponto, sem anestesia: se você quer ser escritor, a primeira coisa a fazer é aceitar a sua vocação para a mentira.


Isso mesmo. Todo escritor é um mentiroso profissional. A gente inventa gente que não existe, cria cidades no papel e orquestra tragédias e triunfos com a ponta dos dedos. A sua busca não é pela "realidade" – essa coisa bagunçada e sem sentido que acontece do lado de fora da janela. Sua verdadeira missão, seu santo graal, é a verossimilhança.


A realidade é o caos; a verossimilhança é o caos organizado. É a mentira tão bem contada, tão cheia de detalhes convincentes e lógica interna, que o leitor desliga voluntariamente a sua incredulidade e mergulha de cabeça, aceitando seu mundo de papel como uma verdade temporária.


E como se constrói essa mentira perfeita? Com técnica. A arte é o fogo, a dor, a vida que te impele a escrever. A técnica é a engenharia que impede a sua história de desmoronar.

Para provar meu ponto, não vou usar teorias chatas. Vou fazer o que mais gosto: colocar um mestre na nossa mesa de cirurgia e dissecar seu trabalho na sua frente. Hoje, nossa "vítima" é o peso-pesado sul-africano J.M. Coetzee e sua obra-prima brutal, Desonra.

Vamos analisar uma cena que é um soco no estômago, não pelo que conta, mas por como conta.


Preparem o espírito. A aula vai começar.


O auditório da liga estudantil está escuro. Sem ser notado, ele se senta na última fila. A não ser por um careca de uniforme de bedel, umas filas à frente, ele é o único espectador. Pôr do sol no salão Globe é o nome da peça que estão ensaiando: uma comédia sobre a nova África do Sul que se passa em um salão de cabeleireiro em Hillbrow, Johannesburgo. No palco, um cabeleireiro gay, muito desmunhecado, atende dois clientes, um preto, um branco. As falas rolam entre os três: piadas, insultos. A catarse parece ser o princípio dominante: toda a grosseria dos velhos preconceitos aberta à luz do dia e lavada em torrentes de gargalhadas. Uma quarta figura entra em cena, uma garota de sapatos de plataforma enormes com o cabelo numa cascata de cachos. “Sente, querida, já cuido de você”, diz o cabeleireiro. “É sobre o emprego”, ela diz, “que vocês anunciaram.” Ela carrega no sotaque kaaps, típico da Cidade do Cabo; é Melanie. “Ag, arre, pegue a vassoura e tente ser útil para alguma coisa”, diz o cabeleireiro. Ela pega a vassoura, que vai empurrando à sua frente pelo palco. A vassoura se enrola em um fio elétrico. Devia acontecer uma faísca, seguida de gritos e correria, mas alguma coisa dá errado com a sincronização. A diretora sobe ao palco, e atrás dela um jovem vestido de couro preto que começa a mexer com o soquete na parede. “Tem de ser mais ágil”, diz a diretora. “Um clima mais Irmãos Marx.” Vira-se para Melanie. “Ok?” Melanie faz que sim com a cabeça. À frente dele, o bedel se levanta e com um profundo suspiro sai do auditório. Ele devia ir também. Que coisa mais impertinente ficar sentado no escuro, espionando uma menina (sem querer, a palavra cobiçando lhe vem à mente). E, no entanto, os velhos aos quais está a ponto de se juntar, os vagabundos e andarilhos de capas de chuva manchadas e dentaduras rachadas e orelhas peludas — eles todos um dia foram filhos de Deus, com membros firmes e olhar desembaçado. Será que podem ser condenados por se agarrar até as últimas ao seu lugar no doce banquete dos sentidos? No palco, retomam a ação. Melanie empurra a vassoura. Um estouro, uma explosão, gritos de alarme. “Não foi culpa minha”, grasna Melanie, “Credo, por que tem de ser tudo minha culpa, sempre?” Silenciosamente, ele se levanta e sai atrás do bedel para o escuro lá de fora. Às quatro horas da tarde seguinte, ele está no apartamento dela. Melanie abre a porta com uma camiseta amassada, shorts de ciclista e chinelos com a forma de esquilo de história em quadrinhos, que ele acha bobos, de mau gosto. Ele não avisou que vinha; ela fica surpresa demais para resistir ao intruso que impõe sua presença. Quando ele a pega nos braços, ela fica mole como uma marionete. Palavras duras como bastões batem o delicado labirinto de seu ouvido. “Não, agora não!”, ela diz, se debatendo. “Minha prima vai voltar logo!” Mas nada o detém. Ele a leva para o quarto, arranca aqueles chinelos absurdos, beija-lhe os pés, perplexo com o sentimento que ela evoca. Algo a ver com sua aparição no palco: a peruca, o quadril rebolando, a fala rude. Estranho amor! Mas da aljava de Afrodite, deusa da espuma do mar, sem dúvida nenhuma. Ela não resiste. Tudo o que faz é desviar: desvia os lábios, desvia os olhos. Deixa que ele a leve para a cama e tire sua roupa: até o ajuda, levantando os braços e depois os quadris. Pequenos arrepios de frio a percorrem; assim que está nua, enfia-se debaixo do cobertor xadrez como uma toupeira que se enterra, e vira as costas para ele. Estupro não, não exatamente, mas indesejado mesmo assim, profundamente indesejado. Como se ela tivesse resolvido ficar mole, morrer por dentro enquanto aquilo durava, como um coelho quando a boca da raposa se fecha em seu pescoço. De forma que tudo o que lhe fosse feito, fosse feito, por assim dizer, de longe. “Pauline vai voltar a qualquer momento”, ela diz, quando acaba. “Por favor. Você tem de ir embora.”

A Anatomia da Mentira Perfeita: Os 5 Micromecanismos de Coetzee


Sentiram o peso? A beleza terrível desse trecho não está em adjetivos floridos ou explicações psicológicas. Está no osso. Coetzee constrói o horror com uma economia de palavras que beira a avareza. E é exatamente aí que reside seu poder. Vamos dissecar as 5 ferramentas principais que ele usa para nos fazer acreditar (e sentir) cada segundo desta cena.


1. A Banalidade que Grita: O Caso dos Chinelos de Esquilo


Em meio a uma cena de violação iminente, o narrador (e protagonista, David) nota o quê? Os chinelos de Melanie. "Chinelos com a forma de esquilo de história em quadrinhos, que ele acha bobos, de mau gosto". Por que, diabos, isso está aqui? Porque é genial. Este detalhe aparentemente trivial é uma âncora de verossimilhança:


  • Contrasta e Amplifica: A infantilidade boba do chinelo choca-se brutalmente com a violência do que está para acontecer. Esse choque entre o banal e o terrível aumenta nosso desconforto e a tensão da cena a um nível insuportável.

  • Simula a Atenção Real: A realidade não é um filme focado. Nossa atenção é caótica. Mesmo em momentos de crise, a mente se agarra a detalhes estranhos e aleatórios. O chinelo de esquilo é o carimbo que diz: "isto é real, isto é palpável".

  • Revela os Personagens: Os chinelos nos dizem algo sobre a juventude de Melanie. Mais importante, a reação de David a eles ("bobos, de mau gosto") revela seu desprezo, sua arrogância de professor erudito julgando o mundo que ele não entende, mas que mesmo assim deseja consumir.


2. A Ação que Narra o Horror


Esta é a "tábua de salvação" de qualquer bom escritor: mostrar, não contar. Coetzee é mestre nisso. Ele não nos diz que a cena é violenta; ele constrói a violação através de um balé macabro de ações físicas, de verbos puros e brutais:


  • "arranca aqueles chinelos absurdos"

  • "beija-lhe os pés"

  • "Deixa que ele a leve para a cama e tire sua roupa: até o ajuda, levantando os braços e depois os quadris."

  • "enfia-se debaixo do cobertor [...] e vira as costas para ele."


Cada verbo é um prego no caixão da autonomia de Melanie. A passividade dela, descrita em ações ("ajuda, levantando os quadris"), é infinitamente mais devastadora do que qualquer parágrafo explicando seu medo. É a principal ferramenta de "mostrar, não contar" em plena potência.


3. O Jogo de Vozes: Quando o Narrador Foge


Preste atenção nisto: “Não foi culpa minha”, grasna Melanie, “Credo, por que tem de ser tudo minha culpa, sempre?”


Coetzee poderia ter escrito: "disse Melanie, com voz irritada". Mas ele usa "grasna". E, mais importante, ele nos entrega a fala dela, pura, sem o filtro da narração. Por alguns segundos, o narrador em terceira pessoa some. Esse truque — o discurso indireto livre — é uma arma poderosa que colapsa a distância segura entre o leitor e a cena. Nós somos arrancados da poltrona de espectador e jogados lá dentro, sem a proteção do narrador. A verossimilhança nasce desse desconforto, dessa proximidade forçada.


4. O Ritmo Clínico da Prosa


Observe a cadência do texto. Coetzee usa frases curtas, declarativas, que criam um ritmo implacável, quase documental, de inevitabilidade.


  • "Ele não avisou que vinha."

  • "Mas nada o detém."

  • "Ela não resiste."


Não há floreio, não há hesitação. A prosa avança com a mesma certeza do ato que descreve. Essa escolha rítmica remove qualquer traço de melodrama e apresenta a cena com uma frieza que a torna ainda mais perturbadora e, portanto, assustadoramente crível.


5. O Diálogo que Sangra por Dentro


O diálogo é mínimo, mas cada linha está carregada de subtexto. As personagens dizem uma coisa, mas querem dizer (e nós entendemos) outra, muito mais desesperada.


  • Ela diz: “Não, agora não! Minha prima vai voltar logo!”

  • O que lemos no subtexto: "Estou com medo", "Por favor, pare", "Estou procurando qualquer motivo para que isso não aconteça".


Essa dissonância entre a superfície da fala e a profundidade da emoção é profundamente humana e um mecanismo de verossimilhança de primeira linha.


A Lição Final do Mentiroso Mestre


Como podem ver, não há nada de aleatório no texto de Coetzee. Cada palavra, cada ausência, cada chinelo de esquilo é uma decisão técnica deliberada, calculada para construir uma mentira tão sólida e devastadora que a aceitamos como verdade.

A literatura, no fim das contas, é isso. É a arte de usar a técnica para dar forma à sua visão. Não se impressione apenas com a história; desmonte-a, descubra como o mecanismo funciona. Aprenda com os grandes mestres.


Agora, peguem suas ferramentas e vão construir suas próprias mentiras inesquecíveis.

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