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Universos Literários 7: Jorge Luis Borges e a Arte da Verossimilhança

  • Foto do escritor: Ana Amélia
    Ana Amélia
  • 12 de dez.
  • 7 min de leitura


curso de escrita criativa

Aula 7






Olá, falsificadores de realidades.

Sejam bem-vindos ao Módulo 2 da nossa série "Construindo Universos Literários".

Respirem fundo. O ar aqui em cima é mais rarefeito.

Nas últimas semanas, nós sujamos as mãos de graxa no Módulo 1. Aprendemos a apertar os parafusos da Ação, a calibrar o motor do Diálogo e a polir as lentes da Descrição. Vocês agora têm uma caixa de ferramentas completa e funcional.

Mas ter um martelo não faz de você um mestre de obras. Ter um bisturi não faz de você um cirurgião.

Agora, no Módulo 2, vamos sair da oficina e entrar na galeria dos Grandes Mestres2. Vamos ver como os titãs da literatura usam essas mesmas ferramentas que vocês aprenderam para erguer catedrais que desafiam o tempo e a lógica.


E para começar, não vamos bater na porta da frente. Vamos entrar por uma passagem secreta, guiados pelo bibliotecário cego que enxergava o infinito. O homem que nos ensinou que a realidade é apenas uma das muitas formas de ficção.

Hoje, a aula é com Jorge Luis Borges. E o tema é a sofisticação suprema da mentira: a Verossimilhança pela Erudição.


A Estratégia Macro: A Ilusão Intelectual de Jorge Luis Borges


Esqueçam, por um momento, a emoção visceral. Borges não quer fazer você chorar; ele quer fazer você duvidar da sua própria realidade.

A grande estratégia de Borges para construir mundos críveis não é apelar para os sentidos (cheiro, tato, visão), mas apelar para o intelecto. Ele constrói o fantástico usando os tijolos da realidade acadêmica: notas de rodapé, citações de livros, nomes de amigos reais, datas precisas e referências enciclopédicas.

Ele entendeu uma falha fundamental no cérebro humano: nós fomos treinados a acreditar no que está escrito em letra de forma, especialmente se tiver cara de documento oficial.

Se eu disser: "Havia um monstro na sala", você duvida.

Se eu disser: "Conforme relata o Dr. J. S. Mill no volume IV de seus Tratados de Zoologia Oculta (pág. 342), a espécime observada na sala apresentava anomalias...", você tende a aceitar a premissa.

Borges usa a autoridade da erudição como um cavalo de Troia para o impossível.


O Caso de Estudo: "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius"


Para dissecar essa técnica, vamos usar um dos contos mais vertiginosos da história: "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius", do livro Ficções3.


A premissa é, em si, uma conspiração literária: o narrador descobre, através de uma enciclopédia pirata, a existência de um país desconhecido (Uqbar), cujas lendas falam de um planeta imaginário (Tlön). Ao longo do conto, descobrimos que uma sociedade secreta de intelectuais está escrevendo, meticulosamente, a história completa desse planeta fictício para que ele substitua a nossa realidade.

E como Borges nos convence dessa loucura? Usando Micromecanismos de Precisão.


O espelho de borges

Micromecanismo 1: A Ancoragem no Real (O Uso de "Cúmplices")


Borges raramente está sozinho em suas histórias. Ele usa pessoas reais — seus amigos, escritores famosos — como personagens para validar suas mentiras.

Vejam o parágrafo de abertura. Ele não começa num mundo de fantasia. Ele começa numa sala de jantar, em Ramos Mejía, com seu grande amigo e escritor Bioy Casares.


Devo a descoberta de Uqbar à conjunção de um espelho e de uma enciclopédia. O espelho inquietava o fundo de um corredor numa quinta da rua Gaona, em Ramos Mejía; a enciclopédia enganosamente se intitula The Anglo-American Cyclopaedia (Nova York, 1917) e é uma reimpressão literal, mas também morosa, da Encyclopaedia Britannica de 1902. O fato ocorreu há uns cinco anos. Bioy Casares jantara comigo naquela noite e nos demoramos numa vasta polêmica sobre a execução de um romance na primeira pessoa, cujo narrador omitisse ou desfigurasse os fatos e incorresse em diversas contradições, que permitissem a poucos leitores — a muito poucos leitores — a adivinhação de uma realidade atroz ou banal.

A Dissecação do Truque:

Percebam a quantidade de "lastro de realidade" que ele joga em cima de nós antes de introduzir o fantástico:


  1. Localização Exata: "Ramos Mejía", "Rua Gaona". Você pode ir lá no Google Maps.

  2. Objeto Concreto: Uma enciclopédia específica, com data e local de publicação (Nova York, 1917).

  3. Testemunha Real: Bioy Casares não é um personagem inventado; é um escritor famoso, amigo íntimo de Borges.


Ao colocar o fantástico na boca de Bioy Casares e localizá-lo em uma edição específica de um livro real, Borges faz um pacto de verossimilhança quase jurídico com o leitor. Ele diz: "Isso não é uma fábula, isso é um relato do que aconteceu comigo e com o Bioy na semana passada."

A lição? Misture suas mentiras com verdades verificáveis. O leitor engole a pílula do fantástico porque ela está envolvida no açúcar da realidade.


a enciclopédia de Borges

Micromecanismo 2: A Precisão Bibliográfica (O Detalhe que "Prova")


O diabo mora nos detalhes, mas a verossimilhança de Borges mora na bibliografia.

Quando eles vão procurar o verbete sobre Uqbar na enciclopédia, não o encontram na cópia de Borges. Mas Bioy insiste que leu. E aqui Borges usa a precisão do erro para criar realidade.


No dia seguinte, Bioy telefonou-me de Buenos Aires. Disse-me que tinha à vista o artigo sobre Uqbar, no volume XLVI da Encyclopedia. Não constava o nome do geógrafo, mas as indicações cartográficas eram espantosas. [...]
Lemos com algum cuidado o artigo. A passagem recordada por Bioy era talvez a única surpreendente. O resto parecia muito verossímil, muito ajustado ao tom geral da obra e (como é natural) um pouco maçante. Relendo-o, descobrimos sob a sua rigorosa escrita uma fundamental vagueza. Dos catorze nomes que figuravam na parte geográfica, reconhecemos apenas três — Khorasan, Armênia, Erzerum —, interpolados no texto de um modo ambíguo. Dos nomes históricos, um único: o impostor, o mago Smerdis, invocado, aliás, como uma metáfora. A nota parece fixar as fronteiras de Uqbar, mas os seus nebulosos pontos de referência são rios e crateras e serras desse mesmo planeta.

A Dissecação do Truque:

Olhem a audácia. Ele cita o "volume XLVI". Ele menciona que o texto é "um pouco maçante".

Borges entende que a realidade é frequentemente chata, técnica e cheia de falhas.

Se ele descrevesse Uqbar como um lugar mágico cheio de dragões e luzes, perderíamos a fé. Mas ele descreve um verbete de enciclopédia que é "ajustado ao tom geral da obra". Ele cita nomes reais (Armênia, Erzerum) misturados aos falsos.

A técnica aqui é a Falsa Erudição. Ele usa a linguagem seca, acadêmica e supostamente neutra para descrever o impossível.

A voz narrativa não diz "Era incrível!"; ela diz "As indicações cartográficas eram espantosas". É o narrador clínico, acadêmico, que valida o absurdo através de uma postura de análise crítica.


Como Aplicar a "Técnica Borges" na Sua Escrita


Você não precisa escrever sobre enciclopédias ou planetas imaginários para usar isso. A lição de Borges serve para qualquer gênero:


  1. Seja Especificamente Mentiroso: Nunca diga "ele leu num livro antigo". Diga "ele leu na edição de 1974 da Revista de Ocultismo, página 42, aquela com a mancha de café na capa". A especificidade gera autoridade4.


  2. Use a "Voz de Especialista": Se seu personagem vai falar sobre magia, faça-o falar com a terminologia técnica de um engenheiro ou de um historiador. A secura técnica torna a magia mais real do que a poesia deslumbrada.

  3. Ancore no Mundo Real: Insira marcas, locais reais, datas históricas ou figuras públicas na sua trama. Faça o seu universo fictício colidir com o nosso universo factual. A fricção entre os dois gera a faísca da verossimilhança.5


Borges nos ensina que a literatura é um jogo. E para ganhar esse jogo, você não precisa ser apenas um c6ontador de histórias; você precisa ser um falsificador de documentos da mais alta competência.

O Labirinto de Borges

Reforço de Aprendizagem: O Kit de Falsificação Borgeano


  • Erudição como Ferramenta: Use citações, notas de rodapé e referências (reais ou inventadas) para dar peso documental à história.

  • Mistura de Realidade e Ficção: Coloque personagens fictícios interagindo com figuras históricas ou locais geográficos precisos.

  • Voz Narrativa Pseudo-A



    cadêmica: Adote um tom distante, analítico e documental para narrar eventos fantásticos, normalizando o absurdo pela frieza do relato.

  • Detalhe Concreto: A credibilidade não está no todo, mas na especificidade do detalhe (o número da página, a edição do livro, a falha no espelho).


☕ Vamos Conversar?


Borges dizia que a literatura é um sonho dirigido. Mas até os sonhos mais complexos precisam de uma arquitetura sólida para não desmoronar ao acordar.

Escrever com esse nível de precisão e erudição, construindo labirintos onde cada detalhe importa, é uma tarefa solitária e, muitas vezes, vertiginosa. Às vezes, estamos tão imersos na nossa própria "Tlön" que não percebemos onde a lógica falha ou onde a ilusão se quebra.

No conto que analisamos, Borges precisou de Bioy Casares e de um espelho para descobrir um novo mundo. Na Letra & Ato, acreditamos que todo escritor precisa desse "outro" — um olhar externo, técnico e sensível, que não julga, mas que dialoga com a obra para torná-la irrefutável.

Se você tem um manuscrito e quer saber se a sua "mentira" está sólida o suficiente para convencer o mundo, nós podemos ser esse espelho. Que tal nos enviar um trecho? Nossa amostra gratuita é um convite para analisar a engenharia do seu universo literário.

📚 A Estante de Ana: O Nome da Rosa de Umberto Eco

Se Borges criou a ilusão da erudição, Eco criou a catedral. Neste romance, a investigação de crimes em uma abadia medieval é construída com uma densidade histórica e filosófica tão real que você sente o cheiro do pergaminho e o medo da Inquisição. É a aplicação prática, em formato de thriller, da lição de Borges.

Um universo literário não precisa ser verdadeiro; ele só precisa ser irrefutável.

Letra & Ato | Serviços Editoriais

A Letra & Ato é uma empresa especializada em revisão literária com mais de 35 anos de existência. Nosso blog é um esforço de nossos revisores para oferecer material de alta qualidade para a comunidade de escritores e afins.

Para autores com manuscritos em estágio avançado, oferecemos uma análise de amostra do nosso trabalho — gratuita e sem compromisso. A solicitação é feita exclusivamente através do nosso formulário de qualificação neste link ↗️.


Uma reflexão final (e levemente maldita): Ao ler Borges criando mundos falsos com dados precisos, é impossível não notar que ele é o avô espiritual das Fake News. O mecanismo é o mesmo: usar a estética da autoridade para validar uma mentira. A diferença é que Borges fazia arte; e os tiozões da internet fazem estragos.


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